“Divisão sexual do trabalho não desapareceu”, diz influencer feminista
A influenciadora Jaqueline Pinheiro uniu empreendedorismo social com ativismo feminista e percorre o país ensinando a mulheres e pessoas não binárias como consertar coisas e fazer reparos em casa ─ serviços residenciais geralmente terceirizados a homens.

As oficinas de manutenção básica acabam por dar mais autonomia e emponderamento às mulheres, que não caem mais no golpe da “rebimboca da parafuseta”, como dizia um antigo comercial da televisão.
Os anúncios das aulas itinerantes são compartilhados em seu perfil no Instagram, onde assumiu o nome de Jaque Conserta. Na rede social, também publica vídeos narrados por ela de homens em situações hilárias, constrangedoras e irracionais, próprias da “machulência” ─ um neologismo que ouviu em Pernambuco e adotou para descrever comportamentos ridículos e machistas. A fórmula deu certo, e Jaque Conserta reuniu mais de 111 mil seguidores.
“Duas coisas rompem bolhas nas redes sociais: o ódio e o humor. Eu não trabalho com ódio”, disse a influenciadora à Agência Brasil.
O trabalho de Jaque, formada em cinema pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), provoca reflexões sobre as relações de gênero e os problemas sociais no Brasil.
A seguir os principais trechos da entrevista à Agência Brasil.
Agência Brasil: Como começa seu interesse por consertar as coisas?
Jaque Conserta: Eu passei boa parte da minha infância dentro de uma loja de materiais de construção. Minha avó era dona de uma, eu ia passar as férias com meu pai, que repassava os cuidados para a minha avó, e ela me levava para a loja. Então, as minhas férias eram dentro do depósito dessa loja de materiais de construção. Os elementos [equipamentos, ferramentas e peças] acabaram entrando no meu universo.
Mas eu considerar a me dedicar a isso demorou bastante. Tem nove ou dez anos só, já estava com 32 anos. Esse trabalho como Jaque Conserta foi a forma que encontrei de aliar a minha militância e a minha geração de renda. Meu trabalho é ajudar os processos de autonomia das mulheres.
Agência Brasil: Você diria que existe alguma dinâmica social que afasta as mulheres dos serviços de consertos e reparos? Falta aos pais ensinarem às filhas sobre isso?
Jaque Conserta: Sim, com certeza, existe claramente uma dinâmica social que empurra as mulheres para longe de tudo o que é considerado “técnico” ou “mecânico”. A divisão sexual do trabalho não desapareceu — ela só ficou mais elegante, mais disfarçada.
Desde cedo, meninos ganham ferramentas, e as meninas ganham panelinhas. Meninos são incentivados a desmontar as coisas, meninas são incentivadas a mantê-las limpas.
E, sim, faltou e falta aos pais ensinarem esse tipo de habilidade às filhas. Não porque as meninas não sejam capazes, mas porque há uma crença estrutural de que “isso não é coisa de mulher”. Estimularem as meninas a se interessarem por esse universo das ferramentas. A ausência disso faz a maioria das meninas crescerem acreditando que não sabem, que não conseguem, que precisam de um homem para resolver qualquer coisa desse tipo. Isso não é acidente. É estrutura.
Agência Brasil: Não dominar esse tipo de habilidade deixa as mulheres vulneráveis a golpes ou alguma outra forma de violência, inclusive em seus relacionamentos com homens?
Jaque Conserta: Demais. Quando você não domina habilidades básicas de reparo, você fica dependente. E dependência sempre cria uma brecha para violência, abuso, manipulação ou controle, tanto em relacionamentos quanto com prestadores de serviço.
Essa vulnerabilidade aparece em vários níveis: financeiro, psicológico, relacional, físico e sexual. São comuns os relatos de profissionais que ultrapassam limites, assediam, intimidam. Quando uma mulher aprende a lidar com furadeira, chave de fenda, elétrica básica ou pequenos reparos, ela não está só aprendendo uma técnica — ela está rompendo com um dispositivo social de dependência. A autonomia foi a primeira coisa que o patriarcado roubou das mulheres para que ele fosse possível.
Agência Brasil: As mulheres que te procuraram relatam experiências ruins ao chamar homens para fazerem serviços de consertos e reparos? Que tipo de experiências?
Jaque Conserta: Sim, os relatos são recorrentes, e as situações são gravíssimas. Profissionais que tentam intimidar, levantam a voz, falam de forma infantilizante, explicam como se a mulher fosse incapaz de entender o que está acontecendo ali. Há cobranças abusivas, de valores absurdos, porque “ela não vai saber contestar”. Inventam defeitos, quebram peças de propósito, dizem que precisa trocar algo que não precisa.
Muitos casos de assédio, comentários sobre o corpo, insinuações, tentativas de flerte mesmo quando a mulher demonstra desconforto. Há invasão de privacidade, ficam andando pela casa, perguntando se a mulher mora sozinha, tentando criar intimidade forçada.
Também ocorre violência simbólica, riem das perguntas dela, duvidam da capacidade dela de entender o próprio orçamento. Essas situações não são exceções. São sintomas de uma estrutura social misógina.
Agência Brasil: E onde você encontra tantas imagens com homens em situações ridículas para publicar no Instagram?
Jaque Conserta: Eu não preciso nem procurar. O algoritmo já entendeu e aparece para mim muito. Eu deveria ficar curtindo umas receitas, uns bichinhos para ver se aparece outra coisa (risos).
Agência Brasil: Os homens estão rindo do ridículo e da machulência?
Jaque Conserta: Do grupo de seguidores, a grande maioria é de mulheres. Mas teve um crescimento neste ano do número de seguidores homens. Têm vários que que curtem bastante. Eu não mirei nisso, mas tenho ficado muito feliz com esse resultado. Eu recebo feedback de homens dizendo que, desde que começou a seguir a página, têm prestado mais atenção, têm conseguido identificar umas machuências, têm ficado mais atento para não ficar reproduzindo isso. E há uma coisa que me deixa realmente emocionada, fico muito feliz. São os relatos das mães de meninos falando quanto o conteúdo da página tem sido de grande ajuda na educação dos filhos.
Agência Brasil: O que é a machulência? Foi você que inventou essa palavra? Como ela ajuda a entender as relações de gênero?
Jaque Conserta: Não fui eu que inventei essa palavra, eu acho que criei mais o conceito. Quando eu cheguei para morar em Pernambuco, eu ouvi alguém falando isso: “olha lá o machulento”. E, aí, achei essa palavra incrível, né? Ela define muita coisa com facilidade da masculinidade padrão, que valoriza a força e a violência acima de qualquer coisa.
É o padrão de comportamento do macho alfa, do homem que não desenvolve inteligência emocional, que converte qualquer sentimento em agressividade. Também há a tendência dos homens de acharem que sabem mais, que são mais sensatos, que são mais competentes que as mulheres.
Para ter uma ideia, o mais inapto dos homens que cruzei no dia do trabalho se achava mais apto do que eu a usar o meu equipamento.
Agência Brasil: A machulência ajuda a explicar violência contra as mulheres?
Jaque Conserta: A machulência explica violência de modo geral. E, principalmente, a violência contra as mulheres. Porque o macho adulto é esse homem que, consciente ou inconscientemente, acredita que precisa estar dominando para estar seguro. E ele só está seguro quando subalterniza as pessoas com quem ele se relaciona. É a dinâmica da lei do mais forte, uma lógica absolutamente patriarcal.
O cara está sempre ali, demonstrando força, mas, ao mesmo tempo, está sempre se sentindo ameaçado. Ninguém é forte o tempo inteiro. Está sempre se defendendo, sendo agressivo e querendo manter esse lugar de poder. Facilmente, isso se converte em violência contra a mulher.
Agência Brasil: Você também reflete que os homens estão condicionados a não desenvolverem nenhuma responsabilidade nos trabalhos de cuidado. Estamos errando na criação dos nossos meninos?
Jaque Conserta: Eu acho que a gente está errando como sociedade, de modo geral. Os trabalhos de cuidado são responsabilidades de todo mundo. Os meninos também precisam aprender a se cuidar, a cuidar dos outros, a cuidar das áreas comuns da casa e a estabelecer outra relação com o entorno e com a comunidade.
Uma coisa que eu que eu sempre brinco, mas questiono, é por que que só as meninas ganham boneca? Os meninos não vão ser pais? Não seria interessante estimular isso desde cedo neles também? Mas não é só isso. Para, de fato, a gente conseguir mudar alguma coisa, mudar essa cultura patriarcal, a gente precisa começar a ensinar os meninos a largarem o poder. Dar um passo para trás, a abrir mão do poder.
Educar os meninos a identificarem quais são as situações em que já está posto automaticamente em uma posição de poder e aprender a abrir mão. Isso é difícil, porque tem a ver com desconforto, com frustrações.
Nossa cultura ensina aos homens que, se frustrados, eles podem ser agressivos e violentos. Não faz muito tempo, a lei estabelecia como atenuante de um crime a defesa da honra. E o homem ficava impune depois de matar a mulher. Essa cultura machista impõe sofrimento a todo mundo, a meninos e a meninas, a homens e a mulheres.
Agência Brasil: Você também manifesta: “chega de machulento no poder”. As mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. Só pelo voto delas não poderíamos tornar o poder mais feminino?
Jaque Conserta: A gente precisa de mais mulher entrando na política, não só votando. A gente tem a maioria do eleitorado, mas é uma minoria de fato no poder. Dos 513 deputados federais, só 91 são mulheres. Nem todas estão comprometidas com alguma luta por mudança e equidade. A gente precisa formar mais lideranças femininas.


