15 de junho de 2025

“É preciso ir além do cinema indígena etnográfico”, dizem cineastas

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O desenvolvimento do cinema indígena e sua interface com o audiovisual produzido por não indígenas foi tema de debates entre cineastas que participam do 26º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), na Cidade de Goiás, que termina neste domingo (16).

O Fica é considerado o maior evento audiovisual com temática ambiental da América Latina.

Presente ao encontro, Takumã Kuikuro (foto), premiado cineasta brasileiro oriundo do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, aponta duas dimensões do trabalho que ele verifica com mais recorrência entre seus pares indígenas, inclusive os dele próprio.

“Tem duas formas de fazer cinema nas aldeias. Uma é documentar, registrar o conhecimento [oral] que vai ficar para sempre circulando para o povo nas aldeias. O outro jeito de produzir é criar uma narrativa própria sobre a realidade, traduzir para o português para que o não indígena entenda nossa realidade, e exibir através do cinema”, afirmou em conversa com a Agência Brasil.

Takumã já teve filmes premiados em festivais como os de Gramado e de Brasília, e em eventos internacionais de cinema, como Presence Autochtone de Terres em Vues, em Montréal, no Canadá. Em 2017, recebeu o prêmio honorário bolsista da Queen Mary University London. E, em 2019, tornou-se o primeiro jurado indígena do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília, um dos mais importantes do país.

No Fica 2025, o cineasta colaborou no processo de seleção de obras para mostras competitivas. Ele passou a enxergar um amadurecimento na produção audiovisual indígena, e defende a necessidade de superar as velhas narrativas de caráter etnográfico que permeou a produção cinematográfica sobre os povos tradicionais ao longo de décadas, dentro e fora do país.

“Temos que superar a narrativa etnográfica como única linguagem [sobre indígenas no cinema], essa tem sido a minha preocupação. E explorar a fundo a linguagem cinematográfica para contar nossas próprias histórias, criar nossos personagens, fazendo, por exemplo, mais filmes de ficção”, argumenta.  


Goiás Velho (GO), 13/06/2025 - O jurí do festival, Vicent Carelli, fala com Agência Brasil durante, 26ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica 2025), com o tema “Cerrado: a savana brasileira e o equilíbrio do clima”, o festival oferece uma vasta programação gratuita, que inclui mostras competitivas de cinema, oficinas, atrações culturais, atividades ambientais, sessões para o público infantil, shows musicais, além de fóruns e debates.
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Goiás Velho (GO), 13/06/2025 - O jurí do festival, Vicent Carelli, fala com Agência Brasil durante, 26ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica 2025), com o tema “Cerrado: a savana brasileira e o equilíbrio do clima”, o festival oferece uma vasta programação gratuita, que inclui mostras competitivas de cinema, oficinas, atrações culturais, atividades ambientais, sessões para o público infantil, shows musicais, além de fóruns e debates.
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Goiás Velho (GO), 13/06/2025 – Vicent Carelli fala com Agência Brasil durante a 26ª edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica 2025). Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Integrante do júri oficial do Fica 2025, o premiado cineasta e indigenista Vincent Carelli, criador do projeto Vídeo nas Aldeias (1987), que forma cineastas indígenas desde meados dos anos 1980, percebe diferenças fundamentais na produção de cinema entre indígenas e não indígenas.

“Esse acesso com intimidade, com a língua, com o conhecimento e convivência da cultura é outra coisa. Isso, em termos de conteúdo, de sensibilidade, tanto de quem filma quanto de quem é filmado, é um grande diferencial”, avalia.

“Eu sempre tentei fugir dessa ideia de cinema etnográfico para refletir as questões indígenas”.

Relações simétricas

Ao longo dos últimos anos, a colaboração entre indígenas e não indígenas tem sido uma constante no cinema sobre povos tradicionais, mas esse processo ainda ocorre em meio a tensões.

“Quando você vai nas aldeias, todos eles dizem que já tiveram experiências negativas com imprensa, com pesquisadores, com televisão, e com cineastas, né. Todos os agentes. Porque aí ocorre essa falta de simetria no relacionamento”, aponta Vincent Carelli. “Isso é algo que ainda acontece, mas esses jovens indígenas do cinema estão tendo uma atitude mais contundente contra isso atualmente, se colocando como diretores, assinando as obras”, acrescenta.

“Eu vejo muitos não indígenas se colocando acima dos indígenas, excluindo dos festivais mais importantes. Eu, por exemplo, participei do Festival de Gramado, em 2011. Eu ganhei lá um Kikito [premiação], mas, depois disso, nunca ouvi falar indígena participando. Então, ainda é uma coisa meio isolada, esse reconhecimento”, aponta Takumã Kuikuro.

“A gente enfrenta ainda um certo preconceito para ocupar esse espaço”, afirma Kléber Xukuru, cineasta e comunicador indígena, diretor da Ororubá Filmes. “Mas é bom lembrar que os povos indígenas do Brasil são resistentes e insistentes. E o audiovisual é uma ferramenta que hoje a gente tem visto também como uma porta de luta”, destaca.

Olhar indígena

No filme Minha Terra Estrangeira, essa questão aparece dentro e fora da tela. O longa, que estreou com grande sucesso no festival É Tudo Verdade, em abril, foi o principal filme convidado do Fica este ano, e contou com três exibições em salas de cinema da antiga capital goiana. Trata-se de uma colaboração entre o coletivo Lakapoy, formado por indígenas, Louise Botkay, que foi formada pelo projeto Vídeo nas Aldeias, e João Moreira Salles.

O filme acompanha o cacique Almir Suruí, líder indígena candidato a deputado federal por Rondônia, e sua filha, a Txai Suruí, jovem ativista ambiental, durante 40 dias que antecederam as eleições de 2022. A trajetória de Txai no filme foi acompanhada por Salles. O resultado são dois olhares simultâneos, complementares e distintos, sobre as jornadas de pai e filha.  

Uma cena do filme debate exatamente esse ponto, quando num diálogo entre Txai e João Moreira Salles, o diretor se questiona e a questiona sobre o olhar de um homem branco (no caso, ele próprio) para a ativista indígena, focado apenas na militância por direitos territoriais. Nesse momento, ela comenta que um diretor indígena poderia ter optado por ir além de filmar a ativista em ação, mas acompanhar outras dimensões da vida dela, como sua relação com a floresta e com o amor.

Janela de exibição

Uma das novidades desta edição do Fica é a criação do Fórum Indígena e de Povos Tradicionais, com o objetivo de amplificar os saberes e conhecimentos dos povos dos territórios e fortalecer a produção audiovisual feita por pessoas que fazem parte dessas comunidades. Além deste fórum, o festival conta, ainda, com os fóruns de Cinema e Meio Ambiente, criados em edições anteriores.

Uma das mostras competitivas é exclusivamente dedicada a exibir e premiar obras de realizadores indígenas e de povos e comunidades tradicionais. “É uma janela específica para esses realizadores, sem prejuízo de que eles estejam nas outras mostras também, como sempre estiveram e continuarão estando”, afirma o diretor de programação do festival, Pedro Novaes.

* A equipe de reportagem da Agência Brasil viajou a convite da organização do 26º Fica.